quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Porque é que a dominância não morre??

Este artigo foi traduzido na totalidade do artigo com o título ""Why won't dominance die?" publicado no website da Association of Pet Behaviour Counsellors. Queria deixar um agradecimento especial à Inês da Doggy Palooza pela ajuda na tradução do texto.


Uma versão editada deste artigo apareceu no Veterinary Times, volume 40, nº 7 de 22 de Fevereiro de 2010, com o título “O Meme da Dominância” de David Ryan.

Muitos comportamentalistas animais estão preocupados porque o modelo da dominância nos cães persiste, apesar das provas acumuladas de que este é, na melhor das hipóteses, inútil, e na pior, extremamente nocivo.

É fácil entender porque é que tanto treinadores como donos gostam do conceito de “matilha” e “dominância” em relação aos cães. Um matilha significa que somos todos parte do mesmo grupo. “Dominância” explica as nossas respectivas posições dentro do grupo. Nós vivemos numa matilha com os nossos cães e, das duas uma, ou eles nos dominam ou nós os dominamos. Estar no topo da matilha com total dominância faz de si o Alfa com todo o poder que isso implica, assim, os cães tentarão dominar a não ser que os domine primeiro.É uma explicação simples. Excepto que nada disto obedece na realidade a qualquer escrutínio cientifico.

O professor Richard Dawkins descreveu ideias que se auto replicam como sendo “memes” que passam de uma pessoa para outra sem outro motivo para além de serem populares ou engraçadas. Algumas são inócuas, como aquela música irritante que odiamos mas que não nos sai da cabeça, outras podem ser realmente nocivas como a ideia de que as vacinas combinadas da rubéola e sarampo causam autismo, o que continua a impedir que muitas crianças beneficiem da protecção que essas vacinas oferecem.


A teoria da “matilha” e “dominância” dos cães domésticos é uma meme nociva. Evita que muitos donos entendam os seus cães, causa miséria absoluta para ambos e é perpetuada por bem intencionados, mas mal informados, treinadores por todo o mundo. Está provado que é extremamente resistente à extinção.

Esta meme foi orig
inada pela teoria dos anos sessenta de que “os cães são lobos” que assenta na premissa de que se o cão é da mesma espécie que o lobo, logo ambos se comportam da mesma forma. O conhecimento dessa altura baseava-se no livro “O Lobo”, de David Mech, que dizia que os lobos formavam matilhas e que se dominavam uns aos outros, como tal os cães também deveriam formar matilhas e dominarem-se uns aos outros.

Os conceitos de dominância e alfa entraram firmemente na
imaginação não só do público mas também da comunidade cientifica. Como treinador de cães polícia nos anos 80, regularmente tentei “dominar” os meus cães usando o melhor modelo cientifico oferecido na altura.

No entanto, à medida que a ciência avança o nosso ponto de vista muda e, no caso do Dr. Mech, como ele próprio aponta no seu artigo “Whatever happened to the term alpha wolf”, escrito em 2008, estudos mais rigorosos de lobos selvagens revelaram que o seu comportamento social está centrado na unidade familiar, na coesão e na cooperação, ao invés do conflito. Uma luta por dominância dentro da matilha significaria tomar o lugar de um dos pais para poder procriar com o outro.

O modelo que explica a suposta luta pela dominância e aquisição do status de alfa foi substituído por um onde os pais e irmãos mais velhos guiam e lideram os mais novos de forma a garantir o “pool” genético.
Em 1999, o Dr. Mech publicou o “Alpha Status, Dominance, and Division of Labor in Wolf Packs” no qual corrigiu as suas anteriores ideias. Declara que no seu livro “Wolves: Behaviour, Ecology, and Conservation”, de 2003, escrito por 23 autores e editado por Mech e Boitani, o termo “alfa” só é mencionado para explicar porque é que já não se aplica.

Ao mesmo tempo, foram desenvolvidos vários estudos acerca do cão doméstico que demonstraram que o seu comportamento social é diferente do dos lobos. O cão doméstico é uma versão neotenizada do seu antecessor, o lobo; que deu origem a uma nova a espécie que se aproveitava dos novos nichos ambientais criados pelas lixeiras dos povoados humanos. Estas novas condições eliminaram a necessidade de funcionarem como uma verdadeira matilha de lobos.

A cooperação na caça e nos cuidados com as crias são substituídas pela necessidade de cooperar com estranhos. Apesar dos cães se agru
parem à volta de recursos, não formam matilhas familiares coesas da mesma forma que os lobos. O conceito de dominância nunca foi uma qualidade individual mas, sim, o produto de um relacionamento.

Os etólogos determinam que um animal é dominante sobre outro se existir uma tendência de um deles deferir ao outro em vários encontros. Não posso nascer dominante tanto quanto não posso nascer chefe. Como não posso ser dominado se não o permitir, a dominância só pode ser resultado de uma deferência por outros.
As preferências serão estabelecidas durante os próximos encontros mas os relacionamentos entre os cães são complicados demais para serem definidos através de um simples “um individuo domina outro”.

Um relacionamento pacífico é aquele no qual cada individuo conhece as preferências do outro e defere de acordo com elas. Isto é muitas vezes descrito por potencial em manter o recurso, sendo que o aspecto mais importante é que é emergente, ou seja, não é o resultado de uma “dominância” pré programada.
O que vemos nos tão chamados cães dominantes é simplesmente um comportamento natural alterado através da aprendizagem. Por vezes, este comportamento é competitivo por natureza mas a maioria dos problemas relacionados com a dominância são apenas comportamentos que entram em conflito com as expectativas dos donos.

Estes comportamentos conflituosos são resultado das tentativas que o cão faz de assegurar algo que ele sabe que lhe irá dar um benefício emocional positivo – para facilitar acesso a uma recompensa ou evitar a
lgo desagradável. O modo como lidamos com a satisfação destas emoções é o que determina o nosso relacionamento com os cães. Qualquer cão pode ser colocado em qualquer ponto do continuum tímido/extrovertido que existe em todas as espécies. Nos indivíduos tímidos o comportamento que não vai de encontro às expectativas do dono é provavelmente intensificado pelo medo, nos indivíduos extrovertidos o comportamento é livre. A maioria do comportamento canino será uma mistura complexa destes dois extremos.

Esta complexidade é aumentada porque os nossos cães não vivem no seu estado original de necrofagos periféricos. Eles foram refinados através da criação selectiva para funções especificas tais como a caça, a guarda e o pastoreio. Através do enaltecimento destas características presentes no stock original, os humanos criaram cães cujo equilíbrio emocional depende da possibilidade de satisfazerem e exibirem , pelo menos até um certo nível, estas predisposições genéticas. Apesar destas características serem reduzidas durante a “domesticação” – a
procriação de indivíduos mais flexiveis e adaptados a uma vida como animais de companhia – do stock de procriação continuam a aparecer indivíduos nos quais o temperamento original de trabalho está fortemente representado.

Este pode ser uma predisposição para perseguir objectos em movimento, morder calcanhares, usar agressão para resolver conflitos, segurar algo na boca ou qualquer outra disposição típica da raça. A necessidade de efectuar estes comportamentos e a frustração quando não o conseguem fazer podem levar os cães a um conflito com os seus donos. A vida em família também pode ser extremamente inconsistente para um animal de estimação, e os cães podem focar-se no esforço em manter recursos que são extremamente importantes para eles mas não necessariamente para os donos.


A falta de consistência garante ao cão que ele é capaz de decidir o resultado de muitas interacções, por pequenas que sejam. Adicione os efeitos de uma personalidade extravagante ou tímida e ainda de outras predisposições inatas que precisam de ser satisfeitas e terá um cão extremamente resistente aos esforços do dono para controlar o seu comportamento.
Se este comportamento for catalogado como “dominante”, a solução que se oferece é dominar os cães e fazer com eles cedam à sua vontade. Isto muitas vezes envolve atirá-los ao chão e segurá-los ou abaná-los pelo cachaço.

Nos cães onde a falta de obediência é motivada pela frustração de não conseguirem satisfazer as suas necessidades inatas, ou cuja motivação é o medo (como o cão que desenvolveu o medo de ser deixado pelo dono) a aplicação destas ideias erradas de dominância irão aumentar a frustração e o medo e, com eles, a probabilidade do uso da agressão.
De um ponto de vista menos confrontacional, colocar-se em cima da cama do cão para lhe mostrar quem manda fará muito pouco para prevenir que este ladre quando o dono está ao telefone e, ao mesmo tempo, falha em resolver os motivos emocionais que estão na base do comportamento. Inquéritos científicos demonstram que o modelo da “dominância” não tem qualquer base.


Um estudo recente da Universidade de Bristol foi o último a tentar iluminar, senão o público em geral, pelo menos, os profissionais que ainda usam este modelo.
Então porque persiste? Em parte é a facilidade com que esta meme fica na nossa mente. Por outro lado, apesar da maioria dos melhores profissionais estar ciente que é inútil, não factual e até nociva, outros ainda a usam. Pode ser que existam interesses em continuar a promulgar a “dominância” – através da venda de livros e DVD’s – e uma relutância em mudar de opinião pelo embaraço de reconhecer o erro. No entanto, isto não deveria ser obstáculo para uma mudança informada; como disse Keynes, “ Quando os factos mudam, eu mudo de ideias. E você? O que é que faz?”

Ainda existem estudos publicados que nomeiam o conceito, tal como um estudo recente publicado pela Universidade de Córdoba. Existe um artigo ainda mais recente, escrito no Veterinary Times, em que se pede aos veterinários para praticarem medicina baseada em factos. O mesmo se aplica à modificação comportamental dos cães e o estudo de Córdoba é um bom exemplo. Uma avaliação crítica deste estudo mostra que parte do princípio de que “a agressão dominante é a forma de agressão mais comum”... Depois perpetua o erro permitindo aos donos que a definam através da escolha de duas fotografias onde mostram expressões de um cão “dominante” e um “medroso”. No final do estudo, num total de 30 referências, apenas oito são posteriores a 2000, e quatro delas s
ão do próprio autor. A análise dos dados também é básica e mostra associações ao invés de causa-efeito, no entanto, alguns profissionais ainda o usam para defender os seus pontos de vista. Em parte, ainda persiste porque “já alguém viu funcionar”.


É boa televisão ver alguém batalhar e dominar um cão. Infelizmente a televisão não é a vida real e mostra apenas interacções curtas nas quais o cão é forçado a submeter-se. Não é impossível para um dono “ágil” repetidamente forçar o seu cão a “submeter-se”, mas estas medidas desnecessárias e desagradáveis não são como a maioria dos donos quer viver com os seus cães.

Lamentavelmente, as altas audiências destes programas levam a que os avisos nos ecrãs de “não tente isto em casa” sejam muitas vezes ignorados.
O motivo final e provavelmente mais importante para a persistência da “dominância” é porque a sua desmistificação é relativamente recente. Diz-se que geralmente demora cerca de 20 anos para uma nova ciência entrar na consciência do público, mas o seu tempo chegou. Mais e melhores investigações estão a ser conduzidas e cada vez mais profissionais, tal como Keynes, mudam de ideias à medida que os factos mudam.


Mais membros do público se apercebem que existem melhores alternativas e cada vez mais pessoas se apercebem que, apesar da meme ser uma justificação fácil, não é na realidade muito satisfatória.


“Porque é que a dominância não morre?”. O uso deste modelo para explicar o comportamento canino está a morrer. Se as memes podem ter uma existência independente, estamos a assistir à morte desta, à medida que se tenta agarrar ao pouco que resta, existindo apenas nas mentes dos mais teimosos ou egocentristas. À medida que a onda de opiniões informadas se move contra ela, não existirão eventualmente mais locais onde se esconder.

1 comentário:

Aline disse...

quando eu peguei meu primeiro cão (e segundo da casa) comecei a me inteirar das coisas de cinofilia e comportamento.
hjj vejo como fui básica e atrás dos encantadores.
meu cão é bem medroso, e eu com as técnicas "encantadoraas" fiz com q ele simplesmente perdesse a confiança em mim.
estamos em processo de retomada, mas confiança é um cristal que dá um trabalho danado de ser reconstruido uma vez que se parte em pedaços.
a ideia da "não dominancia" veio como um alivio da primeira vez que li no livro o bem estar dos animais de temple grandin.
minha mente parece que relaxou e me disse "é, vc realmente n estava louca. vc n tem que governar nd nem ngm, apenas ensinarr a seguir algumas coisas básicas de convivencia"

lindo post.
aliás, too adorando o blog